25 de set. de 2013

O menino que escrevia versos

De que vale ter voz
 se só quando não falo é que me entendem?
 De que vale acordar
 se o que vivo é menos do que o que sonhei? (Versos do menino que fazia versos)


 - Ele escreve versos!
 Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os
olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.
 - Há antecedentes na família?
 - Desculpe, doutor?
 O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da
criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página.
Lia motores, interpretava chaparias. Tratava-a bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais
requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias:
 - Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol.
 Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra
mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-demel. Para ele, não fora senão período de rodagem. O filho fora confeccionado nesses
namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas confissões
de amor. Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo.
Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com
versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito.
 - São meus versos, sim.
 O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de
estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar
no esfrega-refrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda,
escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido,
avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto?
 Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele
que fosse examinado.
 - O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte elétrica.
 Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe
espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não
importava. O que urgia era pôr cobro àquela vergonha familiar.
 Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava
já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:
 - Dói-te alguma coisa?
- Dói-me a vida, doutor.
 O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona
Serafina aproveitava o momento: Está a ver, doutor? Está a ver? O médico voltou a
erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:
 - E o que fazes quando te assaltam essas dores?
 - O que melhor sei fazer, excelência.
 - E o que é?
 - É sonhar.
 Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o
que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu:
longe, por quê? Perto, o sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E
riu--se, acarinhando o braço da mãe.
 O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida,
foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada, inventara sonhos desses que já nem há,
só no antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem
chegou a começar. O doutor o interrompeu:
 - Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clínica psiquiátrica.
 A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de
olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio.
Contrafeito, o médico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na
próxima semana. E trouxesse o paciente.

 Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendidos. O médico, sisudo,
taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos? O menino não entendeu.
 - Não continuas a escrever?
 - Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida
- disse, apontando um novo caderninho - quase a meio.
 O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia
pensar. O menino carecia de internamento urgente.
 - Não temos dinheiro, fungou a mãe entre soluços.
 - Não importa, respondeu o doutor.
 Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica que o
menino seria sujeito a devido tratamento.


Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se
senta num recanto do quarto de internamento do menino. Quem passa pode escutar a
voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração.

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Esse é um dos versos de um livro chamado "O fio das missangas". 
Gostei tanto quando o li, que resolvi copiá-lo aqui. 
Caso queiram ler mais contos desse livro cliquem aqui
Espero que tenham gostado =) 

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